O governo brasileiro acaba de anunciar a implantação de um novo programa de incentivos fiscais para o setor automotivo, com o objetivo de reduzir os estoques, barateando os preços para facilitar o acesso desse bem à população e a manutenção dos empregos gerados pelas empresas. A redução do preço se dará por meio de incentivos e pequena contribuição das diminuições das margens de lucro das empresas, a serem compensadas pelo aumento da demanda. O programa atingirá R$ 1,50 bilhão e será dividido entre automóveis (R$ 0,50 bilhão), ônibus (R$ 0,30 bilhão) e caminhões (R$ 0,70 bilhão).
É reconhecida a importância do setor automotivo para a economia nacional. Em 2022, o setor faturou US$ 39 bilhões, participando com 5,26% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e com 22% do PIB industrial que, por sua vez, tem participação de 23,9% do PIB Brasil. Entretanto, o programa recém-anunciado carrega em si uma série de vícios, quer pelo diminuto valor e curto período de vigência, quer pela fonte dos recursos que, segundo entrevista do ministro da Economia, Fernando Haddad (CNN -5/06/2023), não provocará aumento do déficit público, pois virá do aumento do preço do óleo diesel (entre setembro de 2023 e janeiro de 2024).
Pelos cálculos do governo, no último quadrimestre deste ano o aumento do diesel produzirá aumento de arrecadação tributária de R$ 1,50 bilhão e, em 2024, o aumento desse combustível gerará mais R$ 9 bilhões de receita. Parece lógico, mas se trata, sem dúvida, de uma lógica perversa, pois o aumento do preço do diesel sabidamente afetará o custo do transporte urbano (ônibus) e dos fretes de tudo o que é produzido no país (alimentos, remédios, produtos de primeira necessidade etc), com influência direta também sobre as exportações, no cálculo da inflação e da taxa de juros. Uma bomba-relógio com data certa para ser detonada. O carro fica mais barato hoje; o feijão fica mais caro amanhã.
Há cheiro de demagogia no ar. A solução encontrada pela área econômica do governo para alavancar um setor produtivo comprova a falta de sensibilidade política e confirma que, para muitos dos maus governantes, o povo não é prioridade.
Coincidentemente, ao mesmo tempo do anúncio governamental o portal de notícias Poder 360, em matéria publicada dia 5 de junho, trazia as primeiras informações da abertura da caixa preta dos gastos tributários da União que em 2024, segundo a Unafisco, deverão alcançar a astronômica cifra de R$ 568 bilhões, o correspondente a 5,86% do PIB.
A reportagem enumera os cinco maiores beneficiários desses gastos tributários: R$ 29,5 bilhões para a Petrobras (tão criticada por sua política de preços); R$ 20 bilhões para a Vale; R$ 5,2 bilhões para a General Eletric/CELMA; R$ 4,6 bilhões para a Fiat/Chrysler; e R$ 3,8 bilhões para a Latam.
Veja-se que, sozinha, a Petrobras, empresa de capital aberto, altamente lucrativa, cujo acionista majoritário é o governo brasileiro é beneficiada anualmente com valor superior à renúncia fiscal (de R$ 27 a R$ 28 bilhões) destinada à Zona Franca de Manaus, que é constantemente atacada na mídia, a despeito de ter esse direito assegurado pela Constituição Federal de 1988 e de cumprir papel essencial para o desenvolvimento da região amazônica, além de ser a principal âncora ambiental do estado e do país, respondendo pela maior renúncia econômica para manter a floresta em pé.
A Constituição Federal é clara ao autorizar renúncia fiscal apenas para a correção das desigualdades regionais e sociais (artigos 3º, 43, 151 e 155, e parágrafos 6º e 7º do artigo 165), mas a farra dos gastos tributários que garantem há décadas incentivos para as regiões mais desenvolvidas do país contraria o mandamento constitucional, sem questionamentos.
Não é, no entanto, o único contrassenso. O mesmo governo que ataca o Banco Central – a despeito da autonomia do órgão - por sua resistência em baixar a taxa Selic, promove o aumento do preço do diesel para compensar a redução no preço dos automóveis. Ignora solenemente que essa medida terá o efeito de sobrecarga da inflação, caminhando, assim, na contramão para a redução dos juros tão reclamada pelo governo e podendo influenciar no sentido contrário ao desejado.
É surpreendente que se ignore o óbvio: acelerar a redução da inflação – uma necessidade para o país – por meio da diminuição do déficit público permitiria efeitos mais positivos não limitados apenas ao setor automotivo, mas para a toda a economia, com a redução dos juros para empréstimos ao setor público (SELIC) e setor privado. E isso poderia ser feito sem mágica ou medidas meramente demagógicas: simplesmente com a drástica redução das renúncias fiscais reiteradamente concedidas de forma ilegítima e que não se prestam ao papel econômico e social que lhes é reservada pela Constituição Federal.
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br