Discurso
pronunciado Por Carlos Marighella na sessão de 4 de julho de 1946 Da Assembléia
Constituinte, por ocasião da discussão do projeto constitucional, no qual o PCB
defende o ensino laico, a liberdade religiosa e o estabelecimento de divórcio
no país.
"A
bancada do Partido Comunista já tem ocupado a tribuna mais de uma vez para dar
sua opinião sobre o mesmo projeto, depois que no plenário foi lido a declaração
de voto pelo ilustre Deputado Caíres de Brito.
Dizíamos,
então, que o projeto constitucional era reacionário, falho e insuficiente,
preso ainda a fórmulas antiquadas, sem ver a realidade brasileira, assegurando
a hipertrofia do Executivo, mantendo um velho instrumento de estagnação e
retrocesso como o Senado, negando o direito de voto a praças de pré e aos
analfabetos, sujeitando a justiça eleitoral ao Poder Executivo, negando a
autonomia dos municípios, negando o direito de greve, passando para uma tímida
repressão aos trustes e monopólios, em vez de impedi-los; não abrindo
perspectivas para liquidação do monopólio da terra, fonte do atraso de todo o
nosso povo, e, por fim, não assegurando a completa separação entre a Igreja e o
Estado.
Fizemos
criticas ao projeto exatamente por esses motivos. Hoje, coube-me a honra de
debater, em nome da minha bancada, o ponto a que acabo de referir-me — a
separação da Igreja do Estado. Nas críticas que aduzimos, naturalmente não
envolvemos a Grande Comissão, em seu conjunto, uma expressão da cultura e da
notabilidade do nosso povo, mas que, evidentemente, não pôde elaborar projeto
capaz de satisfazer às nossas condições, e, por isso mesmo, de transformar-se
em Constituição que encarne a realidade brasileira, que impeça os poderes
ditatoriais e, também, evite a volta da reação e do fascismo, assegurando à
nossa Pátria, progresso e democracia.
Sr.
Presidente, como tenho de me referir, particularmente, à separação entre a
Igreja e o Estado, devo analisar os artigos do projeto relacionados com esse
assunto — art. 159, §§ 9, 11 e 13 e art. 164, §§ 37 e 38. Importante, para nós,
é o confronto dos dispositivos análogos das Constituições de 1934 e 1891.
Tomemos o
artigo do projeto de 1946 atinente à liberdade de consciência, e do teor
seguinte:
"É
inviolável a liberdade de consciência e de crença, e garantido o livre
exercício dos cultos religiosos, desde que não contravenham à ordem pública ou
aos bons costumes. As associações religiosas adquirem personalidade jurídica na
forma da lei civil". (Art. 159, § 9.°).
A
Constituição de 1934, no seu artigo 113, item 5, diz mais ou menos a mesma
coisa quanto à liberdade de religião e à liberdade de consciência e de crença.
Mas a de 1891, no artigo 72, § 3.°, tem redação mais precisa, indicando maior
progresso que o projeto de 1946:
"Todos
os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu
culto, associando-se, para esse fim e adquirindo bens, observadas as
disposições do direito comum". (Art. 72, § 3.°).
O
dispositivo do projeto de 1946 com as restrições que estabelece no atinente à
ordem pública e aos bons costumes, dá, mais uma vez, à polícia do Brasil
poderes para intervir nas questões relativas à religião e impedir o livre
exercício dos cultos religiosos. Não nos devemos esquecer de que, durante o
longo período do Estado Novo eram os Centros espíritas fechados sob alegação de
constituírem focos de agitação. Esse mesmo perigo correremos se, por acaso,
inadvertência ou imprevidência, sagrarmos o que ficou assentado no dispositivo
do projeto constitucional de 1946.
Verifica-se,
Sr. Presidente, do confronto entre o projeto ora em debate e a Constituição de
1891, que esta leva a palma.
Se
analisarmos o artigo referente ao casamento civil, também haveremos de ver que
a vitória cabe ainda àquela Constituição, porque o art. 159, § 11, do projeto,
declara o seguinte:
"O
casamento será civil, e gratuita a sua celebração. O casamento religioso
equivalerá ao casamento civil, desde que se observem os impedimentos legais
deste. . ."
E
acrescenta, por último, que o registro civil "é gratuito e
obrigatório".
A
Constituição de 1934, no art. 146, ficou, mais ou menos, nos termos do
dispositivo do projeto atual.
Entretanto,
a de 1891, no art. 72, 5 4.° situa a questão de forma muito mais clara e
decisiva, afirmando que "a República só reconhece o casamento civil",
evitando assim de modo completo, qualquer ligação que, nesse sentido, se
pretenda estabelecer entre a Igreja e o Estado.
Em
relação ao ensino, enquanto o projeto de 1946 determina, no mesmo art. 159, no
§ 13, que "o ensino religioso, nas escolas oficiais, constituirá matéria
dos seus horários", a Constituição de 1891, no art. 72, § 6.°, diz,
precisamente, que "será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos
públicos".
Mais uma
vez observa-se que a Constituição de 1891 supera o projeto em debate.
Perceberemos,
ainda o dedo dos remanescentes do feudalismo, pretendendo, no ano da graça de
1946, encobrir suas tentativas de manter o Estado ligado à Igreja, se formos ao
art. 193, item III do projeto, o qual veda à União aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios:
"III
— Ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem
prejuízo da colaboração recíproca em prol dos interesses coletivos".
O texto
correspondente da Constituição de 1891 — Art. 72, § 7.° — prescrevia :
"Nenhum
culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência
ou aliança com o Governo da União, ou dos Estados".
Ora Srs.
Constituintes, ainda uma vez constata-se, do cotejo desses dispositivos, que a
Constituição de 1891 também, leva a palma sobre o atual projeto.
As
Relações Entre a Igreja e o Estado
Na
verdade, Sr. Presidente, uma tese precisa ser debatida aqui: a de que nem
sempre a Igreja esteve ligada ao Estado, como, também, nem sempre esteve
separada dele.
Assim
como nem sempre existiu união da Igreja com o Estado, nem a sua separação, é
necessário acentuar que o Estado também nem sempre existiu. É que o Estado não
é senão a resultante dos antagonismos de classes; e, mais, é a instituição que
visa refrear esses mesmos antagonismos.
Como
instrumento de domínio de classes, tem ele de valer-se de todos os meios para
impor a vontade das classes dominantes sobre as dominadas.
Imposto,
polícia, cadeia, tribunal, são como que os quatro pontos cardeais do Estado,
instrumento de dominação de classes. E não deixa, também, de valer-se de um
outro meio, exatamente a religião.
Lenin
afirmava — e tenho de citar Lenin porque estou fazendo a demonstração de uma
tese materialista-dialética:
"A
religião é um aspecto da opressão espiritual que pesa sempre e por toda a parte
sobre as massas populares submetidas pelo trabalho perpétuo em proveito de
outrem, pela miséria e a solidão. A fé em uma vida melhor, no além, nasce,
inevitavelmente, da impotência das classes exploradas contra os exploradores
tanto quanto a crença nas divindades, nos diabos, nos milagres, etc. . . nasce
da impotência do selvagem em luta contra a natureza".
Se a religião
nasce dessa impotência do selvagem contra a natureza pelo seu desconhecimento
dos fenômenos, ou das causas que explicam os fenômenos dessa mesma natureza, e
se a religião serve, também como instrumento de opressão das classes
dominantes, é claro que o Estado, como
instrumento
de dominação de classes, não poderia de maneira alguma, deixar de parte a
utilização da religião; porque, como diz Marx:
"A
religião é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, bem
como é o espírito de uma civilização da qual se excluiu o espírito. Ela é o
ópio do povo".
Quer
dizer: a religião adormece, a religião faz que os explorados não se possam
erguer contra os seus exploradores, a não ser quando se tornam cientes da
própria exploração e adquirem a consciência da classe. Mas, assim como a
religião era utilizada pelo Estado, a Igreja o foi. O mesmo aconteceu com o
Cristianismo. Entretanto, como a tese que procuro demonstrar é de que o Estado
nem sempre se tem mantido ligado à Igreja e à religião, faz-se mister, no
estudo do início do Cristianismo, observar que este representou uma religião de
deserdados, de escravos e, por isso mesmo, se opôs ao Estado durante muito
tempo.
Era de
Kautsky, ao tempo em que era marxista, a seguinte interpretação :
"A
igreja cristã tem sido uma organização de domínio, ora no interesse de seus
próprios dignitários, ora no interesse dos dignitários de outra organização, o
Estado, onde este conseguiu obter o controle da igreja. Quem batesse estes
poderes teria também que bater a Igreja. A luta pela Igreja, bem como a luta
contra a Igreja, tem sido, por conseguinte, uma causa de partido, à qual se
acham ligados os mais importantes interesses econômicos".
Como
afirmava, porém, Sr. Presidente, que o Cristianismo estava em seu início
colocado como a religião dos explorados, dos dominados, devo fundamentar a
assertiva. E é o que podemos fazer, se tomarmos a Bíblia e a compararmos com os
Evangelhos escritos à época em que o Cristianismo era ainda uma religião de
escravos, e com os Evangelhos da época em que o Cristianismo já constituía
religião do Estado.
O
Imperador Diocleciano sabia, perfeitamente, que não contava mais com os
exércitos infiltrados de cristãos que não mais empunhavam o gládio romano e,
sim, a cruz, e que não obedeciam às ordens dos césares romanos. Foi
Constantino, chamado o Grande, pelos clericais, quem compreendeu ser o único
recurso transformar o cristianismo em religião do Estado, e o fez no século IV.
No tempo,
portanto, em que ainda não era religião do Estado, dizia Jesus, no Evangelho de
São Lucas, escrito nos princípios do século II:
"Dificilmente
entrarão no Reino de Deus os que têm riquezas. Porque mais difícil é entrar um
camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus. (XVIII
— 24-25.).
Quer
dizer, o problema levantado por Jesus não era o do rico ser mau, nem o do rico
não ser religioso, mas, precisamente, o fato do rico ser rico, do rico ser
explorador.
Era a
mesma coisa que afirmava Jesus, no Sermão da Montanha:
"Bem-aventurados
os pobres, porque deles é o Reino de Deus; bem-aventurados os que têm fome,
porque serão saciados; mas ai dos ricos! ai dos que estão fartos, porque terão
fome! ai dos que riem agora, porque depois chorarão!" (Lucas VI-20).
É o mesmo
problema, portanto: o rico a ser castigado, não porque seja mau, mas,
precisamente, por ser rico e por ser explorador.
Já no
Evangelho de São Mateus, escrito no século IV, em que a religião cristã passou,
por determinação de Constantino, a ser religião do Estado — o Sermão da Montanha
sofre alteração: não se fala mais em bem-aventurados os pobres; fala-se, agora,
em "Bem-aventurados os pobres de espírito". . . o que, na realidade,
não tem sentido nenhum.
Mas a
religião cristã, o cristianismo, adotado como religião do Estado, serviu de
sustentáculo a todos os senhores de escravos e a todos os dominadores da Idade
Média e do feudalismo. A filosofia escolástica é a que servia a esses desígnios
de exploração dos senhores de terras e dos barões feudais.
Quando a
burguesia se levantou na França contra o feudalismo, insurgiu-se, precisamente,
contra a religião, que fora o esteio de todos os senhores feudais. Aí, então, é
a própria burguesia revolucionária que pretende estabelecer uma separação entre
a igreja e o Estado.
Antes
disso mesmo, na Alemanha feudal, tivemos a reforma de Lutero, que se ergueu
contra a união existente entre os senhores e barões feudais de então e a
Igreja. Em 1523 e 1525, a História pôde registrar movimentos da pequena nobreza
e também dos camponeses, inspirados na reforma luterana.
Mas
Lutero, que representava os interesses da burguesia, não foi capaz de levar
adiante sua reforma, passando-se, com armas e bagagens, para a própria nobreza,
e a religião luterana ficou, então, como religião do Estado, dentro da
Alemanha.
Na
França, Calvino pregou, também, sua reforma, que, no fundo, representava as
aspirações da burguesia que se insurgia contra os senhores feudais não
conseguindo, porém, a vitória em sua terra natal. Mas o calvinismo se espalhou
como religião, principalmente pela burguesia de países como a Holanda e
Bélgica. E porque não tivesse conseguido a vitória, a burguesia, no tempo de
Calvino, em 1789, por ocasião da Revolução Francesa, levantou-se muito mais
seriamente contra a religião dando lugar ao materialismo do Século XVIII. Mas
depois que a burguesia assegura o seu poder, reprimindo a religião ou
estabelecendo com raízes mais profundas a separação entre a Igreja e o Estado,
— porque isso interessava a ela própria, como classe, para que se libertasse
daquela outra que o dominava anteriormente — logo a vemos numa posição
contrária, quando o proletariado começou a aparecer como classe em si e para
si.
Depois da
revolução de 1848 a burguesia francesa, não estava mais interessada em manter o
materialismo do século XVIII, em manter a separação entre a Igreja e o Estado.
Para que a burguesia explorasse o proletariado lançava mão, novamente, da
religião e procurava ligá-la ao Estado, embora, sob forma disfarçada. É o tempo
em que surge o positivismo, que é uma filosofia reacionária para sua época,
dentro da França, porque era uma doutrina criada com o intuito de esmagar o
proletariado, a classe mais consequentemente revolucionária, destinada a
libertar-se a si mesmo e a toda sociedade.
Eis aqui
o que o ilustre historiador russo Scheglov afirma a respeito do positivismo:
"O
positivismo de Comte significa um retrocesso em comparação com a filosofia da
burguesia progressista e revolucionária, com o materialismo francês do século
XVIII e com a dialética de Hegel. Comte expressava o ponto de vista da
burguesia já convertida numa classe reacionária,. preocupada em.esmagar a luta
revolucionária da classe operária".
E, assim,
Sr. Presidente, explica-se porque, quando a burguesia está interessada em
manter seu domínio, se vale da religião, procurando ligá-la ao Estado.
A Luta
Pela Separação Entre a Igreja e o Estado no Brasil
Transplantando
para o Brasil, esta mesma situação, podemos dizer que, depois de 1822, quando
já havia sido iniciado o movimento pela nossa emancipação política, a burguesia
ainda incipiente e muito fraca começava a compreender a necessidade de lutar
contra o poder temporal, contra o poder dos Papas, contra a teoria que dizia
ser fonte do Direito o Poder Divino — omnia potestas a Deo est. Quando já esta
situação se verificava dentro do Brasil, pudemos também assistir a fatos como o
que se deu quando o Papa Leão XII baixou a bula "Preclara
Portugaliae", instituindo a Ordem de Cristo para que os Imperadores,
dentro de nosso país, ficassem com atribuições no sentido de nomear bispos e
eclesiásticos, e a Assembléia Geral de então reagia contra essa bula, em 1827,
por intermédio de uma declaração do Padre Diogo António Feijó, de Limpo de
Abreu, Bernardo de Vasconcelos e José Clemente Pereira.
O parecer
da Assembléia Geral dizia o seguinte :
"E
quais são esses direitos? A bula os designa; e são, segundo ela, todos os
privilégios e direitos sobre as igrejas e benefícios concedidos pelos papas.
Mas onde estará o inventário desses direitos e privilégios que os Reis de
Portugal exerciam sobre as igrejas do Brasil, adquiridos por concessão dos
papas?
Acaso há
sobre a terra outra fonte de onde derivem atributos majestáticos que não sejam
as leis fundamentais dos impérios?"
Aí, Sr.
Presidente, verificamos precisamente a reação daqueles que, procurando
libertar-se do domínio de Portugal, já começava por não aceitar essa ligação
estreita entre a religião e o Estado. Mas, a tendência para a separação entre a
Igreja e o Estado, no Brasil, se aprofunda com o movimento pela implantação da
república, e justo é destacar-se aí o papel dos positivistas.
O
positivismo que, na França, representou um papel reacionário porque se atirava
contra o proletariado, dentro do Brasil representa um papel progressista porque
é nossa burguesia incipiente que se volta contra os senhores de escravos, que
dominavam no tempo do Império. Este o caráter progressista dos positivistas
dentro do Brasil e, por isso, com tanta firmeza se dedicaram à luta pela
separação entre a Igreja e o Estado.
Não são,
porém, somente, os positivistas que têm desempenhado papel acentuado, no
sentido de separar a Igreja do Estado, no Brasil. Há opiniões de outros
publicistas e filósofos que também se colocam dentro do ponto de vista
democrático e justo, adequado a situação em que vive o povo, que precisa de
libertar-se e construir a sua própria grandeza, como é o caso do padre Ventura
de Raulica, que dizia:
" a
religião não é nenhum pontífice, sacerdote ou cristão, muito menos pode ser
instrumento do governo."
Laboulaye,
grande publicista francês que tem toda a razão de ser aqui citado, visto como
não é materialista, nem também adepto do marxismo, afirmava que o Estado nada
tem a ver com o fiel ou o crente, mas com o cidadão.
O próprio
Laboulaye dizia ainda que é justo negar-se à Igreja a posse da terra, porque um
dos motivos que a tem levado — e falo aqui, em Igreja, de modo geral — a
resistir, quanto a essa separação entre a religião e o Estado, é que,
realmente, tem ela interesses econômicos profundos ligados a essa situação,
isto é, de proprietária de terras e latifúndios.
Sr.
Presidente; sustentando o ponto de vista da separação entre a Igreja e o
Estado, estamos, necessariamente, nos colocando numa atitude democrática, de
vez que não pode haver democracia sem a liquidação do monopólio da terra, que é
contra o progresso. Se ainda não conseguimos a liquidação desse monopólio, qual
se acha tão estreitamente ligado o clero, ou a Igreja, que, pelo menos,
desenvolvamos os maiores esforços no sentido de garantir, no projeto
constitucional de 1946, a separação entre a Igreja e o Estado, não deixando
margem alguma para que os remanescentes do feudalismo tripudiem sobre o nosso
povo, servindo-se dos dispositivos introduzidos no referido projeto.
Nós,
comunistas, sabemos respeitar as religiões; somos pela liberdade completa de
consciência e não desejamos, de forma alguma, que essa liberdade seja utilizada
pelos dominadores, pelos fascistas, pelos reacionários, pelos senhores feudais
para acorrentar o nosso povo, miseravelmente, como o têm feito.
Não
combatemos religiões, porque não seria útil, proveitoso, nem mesmo científico,
visto como a religião só desaparecerá quando desaparecerem os antagonismos de
classe. É necessário compreender que, hoje, todo o povo sofre sem que seus
dominadores se lembrem de procurar ver se os que estão sendo explorados são
católicos, positivistas, teosofistas, ateus, ou pertencem a qualquer outro
credo religioso. O patrão, capitalista explorador, não paga melhor salário a
seus operários, porque se trata de um católico se a religião desse patrão
anti-progressista é a católica. O sistema de exploração é o mesmo. A única
divisão que se pode fazer no seio da sociedade é realmente entre os explorados
e os exploradores.
Daí,
Senhores Constituintes, a posição do Partido Comunista em querer lutar, com
todas as forças da Democracia, como Partido democrata que é, para garantir, no
Brasil, a liberdade de consciência, respeitando-se todos os credos, fazendo que
se não estabeleça privilégio de um credo sobre os demais, ou não se recorra a
essa situação, no sentido de impedir a liberdade democrática e acorrentar mais
ainda a nossa gente.
Para
encerrar a parte referente à liberdade religiosa, vou ler trecho de A. J. de
Macedo Soares (que não se confunde com nenhum dos seus homônimos dos tempos
atuais) no qual, em folheto publicado em 1879, sob o título "Da Liberdade
Religiosa no Brasil", tratou do assunto aqui ventilado:
"A
conseqüência da posição da religião em frente do Estado é que este, como
instituição encarregada de realizar o direito, deve reconhecer a liberdade da
religião e garantir as condições necessárias para o seu desenvolvimento".
E, mais
adiante:
"A
Questão da liberdade religiosa está decidida a favor da democracia e parece
que, antes que o século XIX se volva nas sombras do passado, terá recebido a
consagração de caso julgado".
Assim,
Sr. Presidente, dentro de nossa tese materialista dialética, interpretamos a
separação entre a Igreja e o Estado não considerando de maneira alguma entre
eles união eterna, mas vendo tudo em movimento e ligando sempre esses fenômenos
às condições materiais de vida, às relações de produção, porque religião não é
coisa que tenha proporcionado a existência do homem e, sim, porque a vida deste
é que faz a religião. Quanto ao Estado, como nem sempre existiu, também não
poderia ser dado aqui como coisa estática que tivesse sua existência sempre
ligada à Igreja ou à religião.
Apresentamos
emendas ao projeto no que tange à separação entre a Igreja e o Estado. Já foram
publicadas e as defenderemos no momento oportuno, tão logo sejam submetidas ao
voto do plenário.
A
Constituição e a Família
Para
terminar o debate acerca do projeto constitucional, consubstanciado nos
parágrafos 37 e 38 do art. 164. O primeiro deles diz o seguinte:
"A
família, constituída pelo casamento indissolúvel, tem direito a amparo especial
dos poderes públicos".
Ora, Sr.
presidente, a família, constituída, por qualquer forma, merece o amparo dos
poderes públicos.
Como
Representantes do povo e Constituintes de 1946, devemos procurar exatamente a
realidade. Não adianta firmarmos uma coisa no papel, sendo outra a realidade.
Nunca
houve esse casamento indissolúvel em todo o desenvolvimento da humanidade. A
própria família nunca teve este aspecto estático, que muitos legisladores lhe
atribuíram. Sob o ponto de vista materialista-dialético e da nossa concepção
marxista, a família também evoluiu e tem de se adaptar às condições materiais
de vida. Não são, aliás, somente os marxistas que assim afirmam; ilustre sábio
norte-americano que, durante muito tempo, viveu entre os índios iroqueses na
América do Norte também adotava esse conceito sobre a evolução da família.
Ouçamos a
palavra de Morgan:
"A
família é o elemento ativo; nunca permanece estacionária, mas, sim, passa de
uma forma inferior a uma forma superior à medida que a sociedade evolui de um
grau mais baixo para um mais alto".
Isso
demonstra claramente, Srs. Representantes, que a família, tendo de obedecer a
essa evolução, nem sempre foi o que é hoje.
Existia
muito antes do casamento monogâmico, da família monogâmica o casamento por
grupos a família consangüínea. E para mostrar, dentro do nosso critério
científico, como esta é a realidade, posso citar Engels, grande marxista, que
tão profundamente estudou a evolução da família, numa obra completa como é
"A origem da família, da propriedade privada e do Estado".
Diz ele:
"De
acordo com a teoria materialista, o móvel essencial e decisivo a que obedece a
Humanidade na sua história é a produção e a reprodução da vida imediata. Por
sua vez, este móvel divide-se em duas partes: de um lado, a produção dos meios
de existência, de tudo o que proporcione alimento, vestuário, habitação e
utensílios domésticos e, de outro lado, a produção do próprio homem, a
reprodução da espécie. As instituições sociais sob a as quais vivem os homens
em determinada época estão em intima relação com estas duas espécies de
produção, o trabalho e a família.
Quanto
menos desenvolvido está o trabalho, mais restrita a quantidade dos produtos do
trabalho e menor a riqueza da sociedade, a ordem social está mais subordinada
aos laços de consangüinidade".
Sr.
Presidente, quer dizer que houve um momento em que a família era consangüínea,
em que não havia barreiras no comércio sexual em que pais e filhos podiam
contrair matrimônio, em que no limite da família avôs e avós eram ao mesmo
tempo maridos e esposas, em que pais e mães eram maridos e esposas igualmente,
e, assim, netos e netas, bisnetas e bisnetos.
O grande
e primeiro progresso que se realizou na evolução da família foi justamente a
proibição do casamento entre pais e filhos, e, em seguida o outro grande
progresso a proibição do casamento entre irmãos e irmãs.
Mas, no
tempo em que predominava o comunismo primitivo o comunismo espontâneo, que
existiu na época da pré-história da humanidade, o casamento era por grupos e
esses laços de consangüinidade iam em grau bastante avantajado.
É com a
família punalua que se verifica a proibição de casamento entre irmãos e irmãs,
e o progresso que se dá em seguida é com a chamada família sindiásmica, segundo
a classificação de Morgan. Ainda aí o casamento é por grupos.
Neste
momento, o progresso que se faz é exatamente que entre os vários maridos e as
várias mulheres há uma mulher preferida e um esposo preferido, mas podendo o
casamento dissolver-se a prazo curto, a qualquer momento, se tanto interessar a
um dos cônjuges.
O outro
progresso em relação à família sindiásmica é o da família monogâmica. Chegamos
assim, à família monogâmica dos dias de hoje, que nem sempre foi monogâmica,
segundo estou demonstrando pela tese que apresento aos Srs. Representantes:
família monogâmica apoiada na propriedade individual.
Quando se
passou da propriedade comum, da propriedade coletiva para a individual, o homem
que podia desposar, com vários outros de seus companheiros, dentro das gentes
as mulheres que bem quisesse e entendesse, achou que era necessário, para poder
transmitir seus bens de fortuna, determinar quais eram os seus filhos e, por
isso, apenas por uma questão de ter estabelecido a propriedade privada, exigiu
que a mulher mantivesse a indissolubilidade para com o esposo. Obrigou-a,
porém, a ter um só marido. Mas em vez de reservar para si uma só mulher, como
seria de esperar, preferiu continuar a viver em poligamia, como ainda hoje
vive, pois, na realidade, monogamia è indissolubilidade é só para a mulher. Os
homens praticam a poligamia, fazem casamentos por grupos, enfim, tudo o que
acham que é imoral, mas que se julgam com direito de praticar.
Essa, Sr.
Presidente, a realidade que precisamos reconhecer, a realidade capitalista,
cujas causas residem na propriedade privada dos meios de produção, causas essas
que precisam ser estudadas e melhor meditadas para que possamos fazer obra
digna de nossos tempos.
A Igreja
Católica nega o divórcio precisamente porque sabe que o adultério é tão
inevitável quanto a morte, e o que não se pode remediar, remediado está. É bem
verdade que o homem, por ter conseguido a propriedade privada, suprimindo o
direito materno dos velhos tempos, obteve assim, uma vitória sobre a mulher e,
mais, subordinando-a à situação de escrava, em que até hoje se encontra.
Fora de
dúvida, entretanto, é que as mulheres vencidas conseguiram, pelo menos,
enfeitar as respeitáveis cabeças de seus maridos, única vingança que podem
tirar, até que transformemos esta sociedade. Assim, quando a propriedade dos
meios de produção passar a ser novamente coletiva, a ser social e não mais como
nas velhas épocas do comunismo primitivo, mas dentro da abundância e da
técnica, quando pudermos utilizar da ciência e dos recursos materiais que
possuímos, quando, enfim realizarmos essa transformação social, então haverá
verdadeira monogamia, não somente da mulher para com o homem, mas também deste
para com a mulher. É balela o que se pretende atribuir à União Soviética — que
conseguiu já estabelecer o socialismo — de que ali não há família, nem se
respeita a família. Precisamente por esse motivo, porque ali se estabeleceu
essa transformação social, porque os bens de produção passaram para as mãos do
proletariado, precisamente ali a mulher é digna de todo o respeito e pôde
deixar de se sujeitar às condições em que se encontra dentro do capitalismo,
com essa monogamia, que é acompanhada, inevitavelmente, de um lado, do
adultério, e, do outro, da prostituição.
Não é
possível, portanto, pretendamos ignorar a situarão real em que nos encontramos
no Brasil. Não há a indissolubilidade, a não ser para a mulher. É necessário,
pois, coloquemos a mulher no verdadeiro papel digno que lhe compete não somente
dentro da família, mas também fazendo-a participar da produção social, porque o
que estabelece essa situação e escravização da mulher é o predomínio econômico.
É o homem o único que está a trabalhar ligado à produção e que sustenta a
família, e, por isso, se acha com o direito de fazer todas as imposições sobre
a mulher.
Ilustre
dama da sociedade carioca, aliás católica, casada, quando pretendeu dissociar-se
de seu marido, porque tinha fortuna, pôde gastar cerca de quatro a cinco mil
contos e casou-se com não menos ilustre cidadão da sociedade carioca, também
católico, que se dissociou de sua mulher. E novo casamento foi feito, legal.
São tidos como figuras de relevo de nossa sociedade e nunca ninguém lhes atirou
a primeira pedra.
É que,
Srs. Representantes, o divórcio, no Brasil, é privilégio de ricos. A realidade
é que a grande massa de nossa população não poderá estar a olhar para as textos
que são fabricados sem que se verifique o que ocorre.
Dentro do
Brasil existem dois milhões de separados por desquite ou separados
naturalmente, sem obedecer a nenhuma lei, porque os casamentos não saíram como
esperavam. Um milhão de filhos adulterinos e, mais ainda, um milhão de
amancebados ou amasiados comuns.
O povo
brasileiro não casa, com tanta complicação, com tantos papéis; por este vasto
interior, para trinta milhões de analfabetos o casamento indissolúvel é apenas
um dogma religioso Não é disto que precisamos mas ver a realidade.
Os
casamentos que se fazem no interior ocorrem quando o padre passa pregando as
missões e depois acabam resolvendo-se da melhor maneira porque os pobres que se
casam nessas missões, sob a proteção de Deus, quando as coisas não vão lá muito
bem sabem, sem muita pompa e sem muita gala, resolver sua situação e separam-se
naturalmente.
Necessariamente
teremos de ver essas coisas e por isso, não poderíamos deixar de dar nossa
opinião favorável ao divórcio. Não que com o divórcio venhamos resolver os
problemas do nosso atraso, porque tudo isso, Srs. Representantes é conseqüência
do monopólio da terra. Enquanto houver feudalismo dentro do Brasil, é claro que
haveremos de encontrar essa situação, mas não tenhamos medo de marchar aberta e
francamente pelo caminho que está traçado diante de nós, que é o caminho
objetivo de encarar as condições brasileiras.
Não
podemos, de maneira alguma, ficar a fazer obra de gabinete a discutir dentro de
uma Assembléia, com graves responsabilidades, como esta, apenas para atender
aquilo que nos dita o dogma da Igreja, o dogma da religião.
Compreendamos
o tempo em que vivemos. A matéria, realmente, não é constitucional, mas da
legislação ordinária. Não tranquemos, portanto, as possibilidades da solução
deste problema, fazendo passar no projeto de 46 um dispositivo que,
evidentemente é reacionário, como o do art. 164, §§ 37 e 38.
É
necessário estudar a realidade e deixar possibilidade para que, mais adiante,
possamos ter no Brasil o divórcio, facilitando o casamento.
Em
Portugal, enquanto não se tinha estabelecido o divórcio, a situação era
semelhante à do Brasil. Instituído o divórcio, cerca de quatro a cinco mil
casos surgiram de uma hora para outra. Mas eram casos que, podemos dizer
estavam à espera de solução, ou melhor, iam se resolvendo de qualquer maneira
porque a lei não atendia à realidade. Mas, logo que o divórcio se transformou
em matéria de lei, que se verificou? Diminuíram os divórcios. De quatro a cinco
mil casos, passaram a sessenta e setenta por ano.
Na União
Soviética, também, quando se estabeleceu o divórcio, milhares e milhares de
casos surgiram repentinamente; mas eram remanescentes do capitalismo que havia
sido destruído. Logo depois, quando se regularizou a situação, o divórcio, na
União Soviética, vem diminuindo, porque, na realidade, o que o homem aspira é à
monogamia e não às condições estabelecidas, pela opressão negra do capitalismo.
Assim
também, no Brasil: estabelecido o divórcio, iremos ver que inúmeros casos
surgirão, mas são esses casos que existem por aí encobertos, são esses casos
que todo o mundo sente e grande parte da nossa população sente na própria
carne, mas que a lei não quer encarar. A lei, como afirmava, é para ver a
realidade. Devemos dedicar-nos a fazer obra à altura da nossa época e que sendo
democrática, estude o problema na forma em que se apresenta e não somente
busque introduzir fórmulas, como acontece com o projeto de 1946. Se marchamos
para a democracia, se estamos sinceramente devotados a respeitar a opinião de
nosso povo e acatar a realidade, é preciso considerar que a liquidação do
monopólio da terra é o primeiro passo para chegarmos à democracia a que
aspiramos. Mas também não existirá democracia, em hipótese nenhuma, sem a
liberdade de culto, sem o casamento civil — casamento civil sem nenhuma
intromissão da religião, — sem o ensino leigo e sem o divórcio."